Me chamo Pedro Maia, sou papiloscopista policial de São Paulo há 5 anos. A carreira de papiloscopista me atraiu, pois, ao estudar as diferentes ciências forenses depois de me formar em biologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), achei bem interessante essa área que não é muito explorada na grande mídia de forma mais conceitual. Contudo, a papiloscopia é muito comentada em livros e filmes de ficção. A palavra perícia sempre é associada a uma impressão digital, mas pouco se abordam em seus quesitos científicos e estatísticos na mídia em geral, a despeito de uma base sólida nessas esferas de forma aplicada — e nem quantos ramos temos dentro dessa perícia. Muitas pessoas têm um conhecimento maior sobre o ramo da identificação civil devido à emissão de Carteiras de Identidade, mas a Papiloscopia tem muitos outros ramos.
Lendo livros internacionais sobre perícias como “The Game is Afoot: An Introduction to Forensic Science“, da Dra. Adrienne Brundage, entomologista forense da Universidade do Texas, vi muito mais a questão da aceitação da papiloscopia como ciência forense e o papiloscopista como perito na área. Outras fontes internacionais como o podcast “The Double Loop”, de Glenn Langenburg e Eric Ray, ou palestras online de Boyd Baumgartner, apesar de não serem estritamente acadêmicas, foram todas apresentadas por examinadores forenses em papiloscopia no exterior com o mesmo conceito.
Após passar no concurso para papiloscopista, tive a oportunidade de prestar para professor da cadeira de Papiloscopia da Academia de Polícia de São Paulo Coriolano Nogueira Cobra, contexto em que me aprofundei através de textos, livros e artigos da área e consegui alcançar êxito. Gosto muito da intersecção entre filosofia das ciências forenses, tecnologia e parte comportamental, o qual é incipiente a pesquisa no Brasil, na minha opinião. Infelizmente, boa parte das polícias não fomenta a pesquisa científica na área policial, ou quando a aceita, traz empecilhos ao policial pesquisador. Isso traz insatisfação a boa parte dos policiais voltados à mentalidade científica. Principalmente, na minha visão, aos papiloscopistas, que na atualidade são atraídos para a área por descobrirem o quanto essa área forense pode contribuir para a sociedade e que muitas vezes acabam sendo travados por questões internas. A polícia paulistana, e provavelmente brasileira, é centrada em números e resoluções, não pensando normalmente em criação de modelos próprios ou pautados em dados. Espero que isso se altere no futuro, na papiloscopia e áreas periciais e policiais como um todo. Coriolano Nogueira Cobra e Ricardo Gumbleton Daunt tinham isso em mente, e não à toa que a Acadepol e o Instituto de Identificação de São Paulo receberam seus nomes.
Concorrentemente com o processo de professor da Acadepol SP, cursei e estou terminando minha segunda graduação, agora em Ciência de Dados pela Universidade Virtual de São Paulo (UNIVESP), área a qual está muito em voga devido aos avanços em inteligência artificial nos últimos anos. Essa ciência alia matemática, computação e áreas alheias para tentar melhorar a informação e conhecimento sobre variados assuntos. Todas as profissões sofrerão modificações com ela, sejam peritos papiloscopistas, peritos criminais, delegados ou outras carreiras policiais. Ao estudar com mais pormenores essa ciência, acredito que posso me preparar para oportunidades e desafios na área ou outras, automatizando processos repetitivos, descobrindo padrões obscuros e ajudando a tomada de decisões pautadas em dados.
Com esse background, durante meu tempo inicial na polícia, sempre me perguntei por que lá fora o papiloscopista tem um espaço na perícia enquanto em São Paulo, e outros Estados do Brasil, há essa diferença de tratamento entre outros peritos criminais e os peritos papiloscopistas. Acredito que sejam principalmente questões políticas, administrativas e comerciais, já que as literaturas internacional e nacional especializadas não deixam dúvidas sobre a área da papiloscopia estar na perícia e ser uma disciplina forense.
As pessoas tendem a ser binárias sobre categorizações em geral, e a situação da papiloscopia também cai nesta situação. O que existe na realidade são intersecções das ciências e áreas, escalas de cinza do que as coisas podem ser em diferentes aspectos. Essa intersecção ocorre principalmente na papiloscopia criminal, a qual abarca áreas de trabalho pericial complexo, como por exemplo necropapiloscopia, revelações de latentes de diferentes tipos e superfícies, e local de crime.
A figura do perito papiloscopista criminal surgiu dessa necessidade. Entre tantas áreas que peritos criminais exercem, a papiloscopia é uma das clássicas com maior robustez, maior velocidade e menor custo. Por isso, lá fora, são “reservados” peritos para que façam isso, já que a papiloscopia com “pouco” oferece em muitos casos a autoria delitiva. O “custo” que essa perícia possui é demandar treinamento do perito e tempo no local, já que o perito papiloscopista possui mais ferramentas e técnicas no local, além de pré-processar o vestígio papilar no local do crime.
Peritos criminais de local, por serem generalistas, reconhecem os vestígios papilares mas geralmente não os analisam, sendo apenas encaminhados ao Instituto de Identificação para análise pelos papiloscopistas, que são peritos nesta área. Essa perícia demanda o processamento previsto no Código de Processo Penal (CPP) em seu artigo 158-B, inciso VIII, entendimentos estatísticos aplicados, conceitos como matrizes de confusão, acurácia, recall, precision, f-score e análise probabilística aliada a habilidades descritivas. Gosto de dizer que quando o perito papiloscopista elabora seu laudo pericial, ele exerce estatística aplicada a biologia, química e física desse vestígio biológico de impressão.
Observo em minha prática que muitos vestígios papilares levantados por peritos criminais têm normalmente uma taxa de coleta / aproveitamento menor que papiloscopistas de local (pelo menos em São Paulo). O papiloscopista, diferencialmente, tende a analisar o vestígio no próprio local, e pode descartá-lo ou não, caso ele seja imprestável conforme nossa expertise e experiência, além de poder analisar o tipo de superfície e optar pelo melhor reagente/revelador a ser aplicado para obtenção de vestígios papilares de melhor qualidade. E a revelação de fragmentos também envolve técnica para vestígios papilares de qualidade.
A metodologia científica aplicada à papiloscopia chamada ACA-V (análise, comparação, avaliação e a etapa facultativa de verificação) já inicia no local de crime com o olhar do papiloscopista treinado na sua perícia. Isso não diminui o valor do perito criminal no local, mas expressa que a coordenação e trabalho em equipe desses dois tipos de peritos seria extremamente salutar. Conjugar o local entre perícia generalista de local e de papiloscopia poderia maximizar o aproveitamento de vestígios papilares e genéticos, entre outros.
Com o advento da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC), houve burburinho sobre os papiloscopistas serem transformados em Oficiais Investigadores Policiais (OIP), muito pelas questões que comentei acima, mas também, para manutenção da hierarquia, já que sendo peritos papiloscopistas, há a necessidade de autonomia técnico-científica para com eles, como já feito com a Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo (SPTC) e explícita nas três grandes áreas da criminalística moderna descritas na LONPC – a criminalística geral, a medicina legal e a identificação. Essa última abarca a identificação por papiloscopia e outras biometrias, como a face, a qual peritos papiloscopistas (o qual é o perito em identificação humana) vêm se debruçando mais com o passar do tempo e externando sua expertise em laudos de confronto facial.
Então foi aí que surgiu a dúvida. Como poderia fazer para descobrir se papiloscopistas são mais peritos do que investigadores, com a nova lei orgânica feita e uma lei estadual a ser discutida? Trabalhando no Instituto de Identificação de São Paulo me deparei com a figura do “assessoramento técnico”, o qual nunca havia encontrado em literatura alguma. Como cientista de dados, e papiloscopista, o qual preza por uma metodologia científica, decidi fazer uma mineração de dados nos editais dos concursos de todos os cargos da Polícia Civil de São Paulo. Foram utilizados todos os cargos policiais para que não houvesse dúvidas da imparcialidade dos dados. Não existem leis que expressem as atribuições de cada cargo, e por isso do uso dos editais. Editais de concurso não possuem força normativa, apenas demonstram as regras do concurso, mas nas sessões de atribuições demonstram o que é esperado para cada cargo. Essas partes são espelhadas de fora, em regras as quais deveriam ser trazidas em lei. Como não existem leis em São Paulo sobre tais, utilizei as atribuições constantes nos editais. Outra vantagem foi a facilidade em comparar todos os cargos, já que dessa forma utilizo o mesmo tipo de fonte.
Depois de limpos os dados, foram observadas diferentes situações levando em consideração a LONPC, a realidade do trabalho policial de São Paulo e as perspectivas de mudanças do Estado em relação aos cargos policiais. Isso gerou medidas quantitativas que podem ser repetidas e verificadas e dão noção matemática a essa questão, reduzindo a ambiguidade linguística e jurídica. Dessa forma, conseguimos medir a similaridade entre cargos, o que é pedido pela LONPC, e deveria ser travada de forma mais assertiva possível. Assim, de forma breve, cheguei a resultados que indicam que não há e nunca houve similaridade com os investigadores de polícia. Há algumas similaridades com peritos criminais, o que indica proximidade sem sermos o mesmo cargo, mas também em área pericial. Meu trabalho focou no papiloscopista policial, mas o link dentro no artigo leva ao código total, onde todos os cargos policiais são abordados de forma comparativa.
O assessoramento foi uma criação por parte dos delegados que atuam dentro do Instituto de Identificação para retirar o caráter pericial do papiloscopista e da papiloscopia, a despeito de todas as características dos vestígios papilares precisarem de análise pericial, trabalho histórico dos peritos papiloscopistas ou tentativa de uniformização da LONPC. Sua criação fere até mesmo preceitos de inteligência, já que todo material criado na inteligência deveria trafegar e ser utilizado somente por agentes e documentos de inteligência. Isso destruiria qualquer potencialidade de utilização ética e justa do vestígio papilar se aplicado conforme a doutrina de inteligência, e não atende à inteligência se sair do âmbito dela. Cria-se, portanto, um paradoxo, uma ambiguidade, uma coisa não possíveis para sustentar uma aberração conceitual de trabalho pericial não pericial.
E caso essa ideia vigore, por que ela deveria parar na papiloscopia? Outros vestígios de local poderiam em teoria ser trabalhados por policiais não peritos, o que deixaria a perícia de local somente com esses policiais, um assessoramento técnico, e os peritos ficariam somente com a análise interna. Sem contar a possível contestação de viés devido à possibilidade de não haver autonomia técnico-científica ou problemas na cadeia de custódia.
Outros reflexos de ações desse tipo são a mudança recente no Estado de São Paulo do laudo pericial papiloscópico para um relatório de exame papiloscópico, o qual tenta esvaziar o caráter pericial do papiloscopista e da papiloscopia no Estado. Uma forma de criar dissimilaridade do papiloscopista com a área pericial. Essa modificação ainda trará reveses à administração pública paulista e ao ordenamento jurídico, como visto em outros casos citados no meu artigo ao longo da história jurídica brasileira envolvendo provas materiais de impressão papilar.
Existem algumas lacunas na minha pesquisa, mas o desenho experimental foi feito para que houvesse transparência em todos os dados e todos os tipos de visualização de resultados. Pretendo verificar com processamento de linguagem natural (PLN) as similaridades também linguísticas de forma semântica em outras situações (espero publicar dentro de algum tempo, mas preciso delinear o projeto e fontes melhor). Minha hipótese é que encontrarei outras similaridades provadamente já expressas em textos plurais. A PLN é muito utilizada nas inteligências artificiais generativas, como o ChatGPT, e em variadas áreas, como do direito. Chegou a hora de a utilizar para a polícia e a situação de papiloscopistas e perícia papiloscópica. O espírito da LONPC é de uniformização, e a papiloscopia deve, a meu ver, também ser padronizada. Espero que com esse trabalho eu possa ajudar em meios para verificação, ou no mínimo documentação de decisões enviesadas caso sejam contrárias a tudo exposto. Criação de diálogos abertos e públicos, ouvindo todas as partes e decidindo para o melhor da sociedade e todas as carreiras, não somente algumas.
A cada dia que passa, essa discussão segue como o disfuncional Socialismo Inglês (SocIng) de “1984”, livro de George Orwell. No fictício livro de Goldstein, presente dentro do livro 1984, há o comentário sobre a ciência e sua utilização. A depender dos superiores, quando a ciência tem que funcionar, suas leis são respeitadas. Mas quando não, há deturpação do seu entendimento. Isso vem acontecendo com a papiloscopia. Ao identificar indivíduos, suas regras são rígidas, muitas vezes até contra os identificadores quando há cometimento de erro. Mas ao reconhecer seu status, são diminuídos. É o que Nassim Taleb indica no livro Antifrágil: a divisão não justa do trabalho. O trabalho árduo e problemas eventuais ficam com os papiloscopistas, os louros e glória a seus chefes. Esse modelo infelizmente precariza a ciência e os papiloscopistas, e poucos são os que ganham ou mantêm status, não inclusa a sociedade paulista ou até brasileira.
O diálogo sério, ético e respeitoso, com vozes de todos, deve ser travado, e pautado em ciência e dados, como toda área pericial e policial. Espero que este meu estudo ajude aqueles dando insights sobre como as coisas mais óbvias podem estar obscurecidas, e que cruzando dados e vendo a totalidade com o Big Data na Ciência de Dados, podem ser revelados. Um agente conversacional sobre teoria policial e pericial também seria algo proveitoso, ainda que não utilize o modelo caixa transparente que busquei na minha pesquisa. Mas é algo que está aberto caso pesquisadores cedam a utilização de seus textos para treinamento em redes profundas ou outros cientistas de dados na área busquem tentar.
A papiloscopia vem ressurgindo agora após sua sabatina aplicada de uma centena de anos. Façamos o movimento oposto de ganhar a academia científica das universidades e publicações, reforçando o que a ciência papiloscópica tem a oferecer. Um exemplo é da publicação “The developmental basis of fingerprint pattern formation and variation”, publicado pelo periódico científico Cell em 2023, com explicações de geração das cristas de fricção em específicos locais do corpo, artigo de primazia e utilização em biologia. Ademais, o próprio congresso de Identificação Humana e suas publicações podem demonstrar o potencial da nossa ciência.
Descobrir mais sobre essa silenciosa ciência e suas aplicações pode trazer um novo alvorecer às perícias em geral, como foi um dia para Juan Vucetich, estatístico e antropólogo, quando aplicou seus conhecimentos na resolução do crime de Necochea, Argentina, em 1892. De lá, houve testagem e reconhecimento do uso de papiloscopia na resolução de crimes. Hoje, a despeito dos avanços tecnológicos e científicos, nós utilizamos a mesma filosofia e aplicação do que foi criado por Vucetich. Seria mesmo justo que um dos pais da papiloscopia, um perito na papiloscopia, não fosse reconhecido como tal, mesmo com todo o arcabouço gerado e ignorando o anacronismo? E se ele é reconhecido, e cada papiloscopista é seu descendente laboral, seria justo que não o fossem, já que fazem trabalho praticamente igual, só que com mais ferramentas, cientificidade e maior assertividade?
Deixo essas questões para aqueles que as lerem ponderem. Sigo aberto a críticas, sugestões e comentários, buscando se aproximar da verdade científica e real, trabalhando a verdade possível e pautando nossa trilha em caminhos técnicos, periciais e científicos.